A justiça do “colete encarnado“


Depois de uma série de adiamentos na fase de debate instrutório e até na leitura da decisão (adiada por duas ocasiões), chegou finalmente o dia em que a juíza Ana Peres decidiu anunciar aos portugueses a sua decisão relativamente ao processo e-toupeira.

A decisão


Público 22/12/2018
A juíza Ana Peres decidiu não pronunciar a Benfica SAD e Júlio Loureiro pelos crimes que estavam indiciados. José "toupeira" Silva foi indiciado de 26 crimes dos 77 que estava acusado e Paulo Gonçalves foi indiciado de 29 crimes do 77 crimes que foi indiciado pelo MP. 

Benfica SAD ilibada


O principal destaque da leitura da decisão instrutória vai obviamente para o facto de juíza Ana Peres ter decidido ilibar a Benfica SAD dos 30 crimes de que era acusada pelo MP. Devo começar por dizer que esta decisão até poderia ser aceitável, desde que Paulo Gonçalves também fosse ilibado dos crimes pelos quais estava indiciado pelo MP, nomeadamente no crime de corrupção activa. Não foi isso que aconteceu.

Portanto, a juíza pronunciou Paulo Gonçalves por corrupção activa mas ilibou a Benfica SAD do mesmo crime. E é aqui que os portugueses ficam absolutamente perplexos com a decisão da juíza. Vamos por partes.

Duas faces da mesma moeda


O ministério público considerou que a responsabilidade criminal do Benfica está assente nos pressupostos das alíneas a) e b) do número 2 do artigo 11º do código penal. Vejamos:


Segundo o código penal há dois pressupostos possíveis para que a Benfica SAD tenha responsabilidade directa nestes crimes. 
1 - Os crimes foram cometidos em nome do interesse do Benfica SAD ou de pessoas que ocupem posição de liderança; ou
2 - A administração da SAD tivesse violado os deveres de vigilância ou controlo que lhe incumbia sobre a actividade de Paulo Gonçalves. 

Basta que um destes pressupostos se verifique para que a Benfica SAD tenha de responder pelos actos de Paulo Gonçalves. Passo a analisar cada uma destas alíneas.

Alíena a) - Crimes cometidos em nome do interesse do Benfica 


De acordo com o que saiu na imprensa, a senhora juíza considerou, e passo a citar: "Os crimes imputados a Paulo Gonçalves nada têm a ver com o interesse coletivo da sua entidade patronal".

Sim, leram bem. Esta é a opinião da juíza. Vejamos agora o que diz a alínea a) do artigo 11º do código penal: Começa com um "em seu nome" - (nome da Benfica SAD). Ora, é fácil perceber que tudo foi feito em nome do Benfica. Quando se dá bilhetes para jogos no Estádio da Luz, acessos VIP para zonas privilegiadas no mesmo estádio, acesso a zona reservada aos jogadores, bilhetes para os jogos fora do Benfica, camisolas e outro material desportivo do Benfica e até  promessas de emprego para familiares no museu do Benfica, está-se a usar que nome? Do Carcavelinhos? Se calhar, a juíza acredita que se fosse um responsável do Carcavelinhos a utilizar o mesmo expediente, as toupeiras tinham cometido na mesma os crimes que foram indiciados, não!? 

Para além dos crimes serem cometidos em nome da instituição a alínea a) refere também a necessidade da existência de "interesse colectivo". Obviamente, o Benfica SAD tem interesse em saber de forma antecipada tudo o que ocorreu em dezenas de processos judiciais relacionados com a Benfica SAD, processos de rivais e outros agentes relacionados com o desporto. O caso dos vouchers, dos emails, jogos para perder envolvendo o Benfica, Jogo Duplo, processo de oferta de bilhetes do Benfica a funcionários do SEF, processo do IPDJ contra claques do Benfica, processos relacionados com o Porto, o célebre processo do Sporting contra a Doyen, um processo que envolvia o jogador Fejsa, um processo que envolve Hugo Gil, outro relativo a César Boaventura e até um processo em que Luís Filipe Vieira estava envolvido, entre muitos outros. 

Eu pergunto, saber tudo isto em primeira mão, muitas vezes antes de as diligências serem efectuadas não é do interesse da Benfica SAD? Quando um juiz concede um mandato de buscas para a SAD do Benfica ou para alguém relacionado com o clube não é do interesse do Benfica saber disso de forma antecipada, para se conseguir preparar convenientemente? Claro que é. 

Para fechar, a alínea a) refere claramente "pessoas que ocupem uma posição de liderança na sociedade". Toda a gente sabe que Paulo Gonçalves é o braço-direito de Luís Filipe Vieira. Tanto assim é que muitas vezes cumpriu até o papel de representação oficial do presidente do Benfica nas mais importantes esferas do futebol nacional e internacional, nomeadamente em reuniões da Liga, da FPF e da UEFA.

Posto isto, a juíza tem a lata de dizer que os crimes "nada têm a ver com o interesse da Benfica SAD"!? Não? Então tem a ver com o interesse de quem? Do Carcavelinhos? Os processos consultados são todos relacionados com clubes rivais, com o próprio Benfica e com agentes desportivos e não tem a ver com o interesse da Benfica SAD!? 

Mas, até vamos dar de barato e aceitar a teoria do Benfica que diz que Paulo Gonçalves não tinha qualquer peso na liderança da Benfica SAD. Para esses casos a lei dá uma outra alternativa que é precisamente a alinea b) do tal artigo 11º do código penal. 

Alínea b) - Violação dos deveres de vigilância


A alínea b) refere-se ao dever e à função de a liderança da estrutura controlar e vigiar as condutas desenvolvidas por subalternos. Controlo que passa por garantir que os subalternos desenvolvam a sua actividade dentro do interesse da pessoa colectiva, mas sem que sejam ultrapassadas as barreiras legais. Como é lógico, só se enquadra na alínea b) se os crimes praticados sejam do interesse da sociedade, como acontece neste caso. 

Nos relatos da imprensa está uma pérola que consubstancia a desculpa para a qual a senhora juíza decidiu não enquadrar na alínea b) os crimes sobre os quais Paulo Gonçalves responderá em julgamento. Ana Peres diz que "os crimes imputados a Paulo Gonçalves foram praticados fora do exercício das funções". Mas que raio quer isto dizer? Não estão todos os crimes fora do exercício das funções de todos nós? Ou a juíza acha que faz parte das funções de algum funcionário cometer ilícitos criminais para benefício da sociedade que representa? 

Mas este argumento até é fácil de desmontar. Ora, se os crimes foram praticados fora do exercício das funções, como diz a senhora juíza, eu pergunto: como se justifica que Paulo Gonçalves tenha utilizado as suas funções para conceder as benesses às toupeiras? Paulo Gonçalves utilizou ou não as suas funções para arranjar os bilhetes (jogos na Luz e jogos fora no norte do país) para as toupeiras? Paulo Gonçalves utilizou ou não as suas funções para oferecer material do Benfica às toupeiras? 

Tudo bem, a senhora juíza até pode acreditar que Paulo Gonçalves foi à loja do Benfica comprar o material do Benfica pagando-o do seu bolso. A senhora juíza até pode acreditar que Paulo Gonçalves comprou todos os bilhetes para os jogos do Estádio da Luz do seu bolso. No limite até pode acreditar que Paulo Gonçalves deslocou-se às bilheteiras de diversos estádios no norte do país e comprou do seu bolso bilhetes para oferecer às toupeiras. Ninguém acredita nisto, mas até vou dar de borla, até porque há algo que só é possível conseguir através do tal "exercício das funções". Como sabemos há uma promessa de emprego para um sobrinho da toupeira e há também acessos a zonas interditas ao público para que as toupeiras pudessem estar com os jogadores. Portanto, nestas duas situações não restam grandes dúvidas que foram opções tomadas no tal "exercício das funções". Mas há mais.

Este artigo b) é claro quando diz que a entidade tem o dever de "vigilância e controlo" dos seus subalternos e aqui é preciso referir algo que é evidente para todos. Desde 2017 que os comportamentos de Paulo Gonçalves têm sido esmiuçados pelos portugueses, através do que foi divulgado nos emails do Benfica. Acreditando que a administração do Benfica nada saberia sobre estes comportamentos, ficou a conhece-los no momento em que os emails foram tornados públicos, até porque nos mesmos há claras indicações da entrega de dezenas de bilhetes para as toupeiras. 

Portanto, a tese de que o Benfica de nada sabia morre aqui. Por que será que o Benfica quando confrontado com estes comportamentos não demitiu imediatamente Paulo Gonçalves. Por que será que nem sequer há um processo disciplinar a Paulo Gonçalves na matéria relacionada com os emails? A não existência de nenhum comportamento condenatório ou de controlo do Benfica para com Paulo Gonçalves consubstancia de forma evidente a tal "violação dos deveres de vigilância" que faz com que a Benfica SAD tenha obrigatoriamente de ir a julgamento pelos indícios criminais apontados a Paulo Gonçalves.  

Uma vergonha para a justiça 


Numa perspectiva mais geral, julgo que todo o país já percebeu que estamos perante indícios criminais muito fortes. Falamos de crimes que colocam em causa a justiça e o estado de direito, e que a serem provados são um verdadeiro atentado à democracia e ao sistema de justiça português. É gravíssimo que nos dias que correm seja possível "comprar" informações de processos judiciais em curso, possibilitando a pessoas singulares e colectivas providenciarem diligências no sentido de subverter o normal desenrolar dos processos. É surreal vivermos num país onde os visados conseguem por exemplo saber com antecedência que serão alvo de uma busca num determinado dia.

Por tudo isto, seria expectável que a senhora juíza tivesse uma postura de defesa acérrima do sistema de justiça contra este tipo de crimes, até porque é o trabalho da magistratura e das polícias que está a ser posto em causa. No fundo é a justiça que está posta em causa. 

É incompreensível que a senhora juíza utilize argumentos tão frágeis para retirar da equação a Benfica SAD, poupando-a a algo que no entendimento da generalidade dos portugueses é absolutamente evidente. Recordo que nas alegações no debate final da instrução, o senhor procurador do MP deixou palavras muito fortes dizendo que "dificilmente nos casos de corrupção a prova colhida é tão vasta e cristalina". Infelizmente, a senhora juíza foi ofuscada por uma luz qualquer que a impediu de ver algo que toda a gente vê. 

Um grave precedente


Tenho aqui dito que este caso é muito mais do que um caso desportivo. Foi colocado em causa um dos pilares da democracia e a resposta não podia ser pior. Esta decisão da juíza Ana Peres abre aqui um gravíssimo precedente que coloca em causa toda a nossa democracia. Atentem em mais uma pérola: 

"Paulo Gonçalves não era representante de pessoa coletiva Benfica SAD, não fazia parte dos seus órgãos sociais. Os actos das pessoas singulares não podem ser refletidos na pessoa coletiva, mesmo que praticados pelos seus dirigentes, mesmo que praticados no seio do entre coletivo podendo traduzir um estado de perigosidade da organização em relação ao cometimento de ilíciitos de natureza criminal".

Absolutamente patético este argumento utilizado por alguém que usa a letra da lei quando deveria ser a interprete do espírito da lei. Se pedirmos a 100 portugueses escolhidos ao acaso para dizerem nomes de dirigentes benfiquistas, Paulo Gonçalves estaria sem margem de dúvidas no top das indicações, juntamente com Luís Filipe Vieira, Domingos Soares de Oliveira e Rui Costa. O que a juíza diz é que se fosse um vogal qualquer da direcção (que ninguém conhece e nem sequer é remunerado), ai sim já estaria enquadrado. 

O precedente está aberto e o que fica desta brincadeira é um verdadeiro mapa do tesouro para a impunidade por parte das empresas. Basta que os crimes sejam cometidos por alguém que não faça parte da administração e está o problema resolvido. Já estou a ver os administradores de empresas um pouco por todo o país a mudarem a sua designação profissional para director jurídico. 

Para fechar importa dizer que esta decisão pode ser revertido pelo tribunal da relação, uma vez que o Ministério Público já anunciou a intenção de recorrer desta justiça de "colete encarnado".

Fonte: Mister do Café
 
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